sexta-feira, 24 de julho de 2009

Deixe entrar sem bater ( Sandra Paixão)


Deixe entrar sem bater meu caro amigo, os homens que morrem de frio, mais por falta de amor, do que por falta de agasalhos...
Deixe entrar sem bater, os que perderam o rumo nos trilhos complicados da existência. Talvez achem no céu do seu abraço, a estrela de Belém...
Deixe entrar sem bater, os que têm fome, mais de carinho, do que de pão, e reparta com eles o seu carinho que vale mais, do que o seu dinheiro.
Deixe entrar sem bater, os que chegam a pé, empoeirados e cansados, porque a passagem do destino era cara demais, e ninguém lhes pagou nem sequer um bilhete de terceira classe, no trem da felicidade...
Deixe entrar sem bater, os que nasceram a contragosto, porque a pílula falhou, e só foram recebidos porque não havia outro jeito...
Deixe entrar sem bater, os enjeitados no princípio: filhos de mães solteiras e do prazer criminoso e egoísta dos homens.
Deixe entrar sem bater, os enjeitados no fim: os idosos que deram tudo de si, que perderam as pétalas da vida em benefício dos outros, de seus filhos, e agora, são deixados de lado para murchar nos fundos dos asilos.
Deixe entrar como se fossem deles, aqueles que não tiveram tempo de ser criança, porque a vida lhes pôs uma enxada nas mãos, quando devia por nelas, algum brinquedo. Os que nunca tiveram sorrisos em seus lábios, porque a lágrima chegava sempre em primeiro lugar...
Deixe entrar sem bater, todos estes, sem temer que falte espaço, porque em um coração com amor, sempre cabe mais um, e até mais mil...
E depois que tiver a sala do peito lotada de infelizes, aleijados e famintos, você vai ter, amigo, a maior das surpresas, ao ver que a face torturada de tantos, se transforma de repente, no rosto iluminado e sorridente do Mestre Jesus, falando só pra você:

“Meu caro amigo, agora, é a sua vez de entrar”.
Pode entrar sem bater, porque a casa é sua!

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Declaração de Amor (Luís Fernando Veríssimo)


Tentei dizer quanto te amava, aquela vez, baixinho, mas havia um grande berreiro, um enorme burburinho e, pensando bem, o berçário não era o melhor lugar.

Você de fraldas, uma graça, e eu pelado lado a lado, cada um recém-chegado, você sem saber ouvir, eu sem saber falar.

Tentei de novo, lembro bem, na escola. Um PS no bilhete pedindo cola interceptado pela professora como um gavião. Fui parar na sala da diretora e depois na rua enquanto você, compreensivelmente, ficou na sua. A vida é curta, longa é a paixão.
Numa festinha, ah, nossas festinhas, disse tudo: “Eu te adoro, te venero, na tua frente fico mudo”. E você não disse nada. E você não disse nada... Só mais tarde, de ressaca, atinei. Cheio de amor e cuba, me enganei e disse tudo para uma almofada.

Gravei, em vinte árvores, quarenta corações. O teu nome, o meu, flechas e palpitações: No mal-me-quer, bem-me-quer, dizimei jardins. Resultado: sou persona pouco grata corrido a gritos de “Mata! Mata!”por conservacionistas, ecólogos e afins.

Recorri, em desespero, ao gesto obsoleto: “Se não me segurarem faço um soneto”. E não é que fiz, e até com boas rimas? Você não leu, e nem sequer ficou sabendo. Continuo inédito e por teu amor sofrendo. Mas fui premiado num concurso em Minas.

Comecei a escrever com pincel e pichei um muro branco, o asseio que se lixe, todo o meu amor para a tua ciência. Fui preso, aos socos, e fichado. Dias e mais dias interrogado: era PC, PC do B ou alguma dissidência?

Te escrevi com lágrimas , sangue, suor e mel (você devia ver o estado do papel) uma carta longa, linda e passional. De resposta nem uma cartinha, nem um cartão, nem uma linha! Vá se confiar no Correio Nacional.

Com uma serenata, sim, uma serenata como nos tempos da Cabocla Ingrata me declararia, respeitando a métrica. Ardor, tenor, a calçada enluarada… havia tudo sob a tua sacada menos tomada pra guitarra elétrica.

Decidi, então, botar a maior banca e no céu escrever com fumaça branca:“Te amo, assinado..” e meu nome bem legível. Já tinha avião, coragem, brevê, tudo para impressionar você, mas veio a crise, faltou o combustível.

Ontem você me emprestou seu ouvido e na discoteca, em meio do alarido,despejei meu coração. Falei da devoção há anos entalada e você disse: “Eu não escuto nada”. Curta é a vida, longa é a paixão.

Na velhice, num asilo, lado a lado em meio a um silêncio abençoado direi o que sinto, meu bem. O meu único medo é que então empinando a orelha com a mão você me responda só: “Hein?”

sábado, 4 de julho de 2009

Intocáveis e Invencíveis ( Nelson Motta)


Não tenho mais nenhuma ilusão de um dia ver algum desses criminosos travestidos de parlamentares atrás das grades e devolvendo o que nos roubou. Eles são muitos, e invencíveis. Sob fogo cruzado de denúncias , juntam-se para se defender, como fizeram PT e PMDB no Senado, embora digam sempre que é pela instituição, a mesma que eles aviltam e apequenam com seus atos.
O dinheiro roubado de nossos impostos, teoricamente, pode até ser recuperado, mas o crime de desmoralizar uma instituição não tem preço.O que nos resta? Confiar na Justiça? Na Polícia? No ladrão? Com Sarney e Renam comandando o Senado e 'espantados' com a descoberta das 181 diretorias? A maior parte foi criada pelos dois. O resto, por Jader Barbalho, ACM e Lobão. E pior. Foram criadas por resoluções da Mesa e ninguém reclamou. E mesmo se reclamasse não adiantaria nada. Tudo dentro da Lei, na liturgia do cargo.
Seria um exagero comparar as disputas pelo poder no Congresso com as guerras de quadrilhas pelos pontos de venda de drogas nas favelas cariocas? Só porque uns vendem crack e cocaína e outros, privilégios e ilegalidades? Guerra é guerra, vale tudo na disputa pelos pontos de poder. Se um tiroteio é de balas, o outro é de números e nomes; mas sempre sobram balas perdidas. Mas, quando o cerco aperta, os dois bandos acertam um armistício: o verdadeiro inimigo é a Polícia. Ou, no caso do Senado, a opinião pública. Porque eles não temem a polícia. Nem à justiça. Eles só tem medo de perder eleição.
Diante do pacto de não agressão entre os dois bandos, resta-nos confiar nos ódios, nas invejas e nos ressentimentos das legiões de apadrinhados que estão perdendo a boca e se vingando de seus traidores. Que muitas falas perdidas encontrem seus alvos.
Diante da certeza de que eles vencerão, que jamais pagarão por seus crimes, que continuarão ricos e corruptos, e até mesmo respeitáveis, resta-nos ridicularizar suas figuras toscas, seus figurinos grotescos, seus cabelos tingidos, suas caras botocadas. Para que suas esposas e amantes leiam, e seus filhos se envergonhem deles no colégio.
Como nós nos envergonhamos todos os dias!

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Dá-me a tua mão (Clarice Lispector)


Dá-me a tua mão: Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número dois, de como vi a linha de mistério e fogo, e que é linha sub-reptícia. Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois fatos existe um fato, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir - nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio.